Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski

 



“Habituara-se a viver tão recolhido em si mesmo, e tão isolado, que passou, então, a temer - não só o avistar-se com a locatária como aproximar-se de quem quer que fosse.”

“Raskólnikov não estava acostumado às multidões e, nestes últimos tempos, sobretudo, fugia do convívio de seus semelhantes.”

“Afinal, para se conhecer alguém, é preciso vê-lo e observá-lo muito tempo, cuidadosamente, sob pena de se deixar levar por prevenções e se cometerem enganos difíceis de reparar, mais tarde.”


Ao iniciar a terceira releitura deste livro, depois de sete anos, imaginei ingenuamente que por estar mais velha e mais fria emocionalmente, este livro não iria me atingir com a violência da última vez. Ledo engano, pois não  só tive maior impacto como também, assim como da última vez, tive crises físicas durante a minha leitura, isto é, gastrite, enjoos, leves lágrimas nos em transportes e bibliotecas públicas, tristezas e depressões depois de um capítulo mais profundo. elementos essenciais para que um livro se transforme em meu favorito, que me doa e atinja fisicamente e psicologicamente a ponto de me perturbar por dias a partir da identificação com os personagens e torná-los parte de mim. 

É assim que me sinto todas as vezes que retorno a esse livro. 

Ao início da história, nos é apresentado as características sombrias e melancólicas do que nos será revelado mais à frente como sendo Raskólnikov. a princípio, o leitor tem a impressão de se tratar de uma descrição de um rapaz comum de sua idade, passando por dificuldades financeiras e família pobre, mas integra, do qual precisa de dinheiro para prosseguir seus estudos na universidade e para manter seu quarto alugado.

Contudo, essa uma história crescente, assim como uma boa parte dos enredos criados por Dostoiévski, ou seja, um início marcado por uma narração que nos apresenta o personagem principal com seus pensamentos e, logo depois aparição de mais personas e, uma delas, caracterizado por ser um elemento de presságio para o que virá logo adiante, geralmente caracterizado pelo uso de verbos no Futuro do Pretérito do indicativo, indicando uma ação que já aconteceu e agora é revista pelo personagem no futuro com ou sem o seu ponto de vista de sua situação atual. 


“Mais tarde, toda vez que recordava essa primeira impressão, atribuía-lhe a uma espécie de pressentimento.”


Dessa maneira, nota-se a organização de ideias do autor e a sua não completa entrega dos fatos, o que, assim como em Os irmãos Karamázov uma ambientação misteriosa e investiga pelo próprio leitor, tornando a narrativa instigante. Ademais, a linguagem do livro é demarcada, em sua maioria, pela presença de longos parágrafos dos quais focam apenas nas reflexões e percepções dos personagens, em específico de RAskólnikov na segunda parte do livro, em que o crime já fora cometido e agora ele passa pela perturbação de conviver com tal sentimento. 

A partir de tais fluxos reflexivos dos personagens, a narrativa passa a elevar as características de um romance psicológico, comumente presente na literatura russa. Assim, os aspectos predominantes são a descrição quase perfeita do que ocorre em uma mente humana em um estado depressivo, ansioso, início de loucuras ou demais transtornos mentais. 


Mas o que diferencia este livro de outros dos quais também tratam desse tema é a maneira como Dostoiévski não nomeia nenhum sentimento, pelo contrário, ele não os define porque os sentimentos não são tão fáceis de entender e denominar como estamos acostumados cotidianamente, pois na realidade, diversos sentimentos sentidos por nós no dia a dia ainda não foram nomeados. Por exemplo, entre o amor e o ódio, felicidade e tristeza, angústia e conforto, pertencimento e não pertencimento, tristeza e depressão, paz e violência, existem diversas outras sensações que não foram ainda definidas e, talvez, nunca serão. 

Neste livro também se tem a presença de uma das minhas personagens preferidas, Sônia. Ela é o par romântico de Raskólnikov. Nessas passagens vemos o amor, mas um amor relatado da maneira como sempre o imaginei: conforto. Ródion passa uma boa parte da história repleto de agonias, doente, perturbado e estranho em razão do assassinto cometido. No entanto, apenas quando encontra Sônia há uma ambientação de calma, doçura e, finalmente, paz. Estes momentos me lembraram da música “The fountain of lamneth”, da banda Rush; ela tem vinte minutos de duração, seis partes, e cada uma delas representa uma fase da vida: nascimento, infância, adolescência, o primeiro amor, a vida depois do amor e a morte. Durante todas essas partes há a presença de baterias violentas, exceto na parte do amor, intitulada pela banda como “panaceia quando a música adota uma letra calma e tranquila, assim como sua melodia. associo assim ao amor de ambos, Raskólnikov repleto de baterias estridentes e Sônia sua Panaceia.  

Uma vez existiu um compositor chamado Lou Reed, na sua música “Sunday Morning” ele diz: “ I've got a feeling I don't want to know.” Essa sensação, de um sentimento avulso e sem nome todos já sentimos em algum momento, talvez você esteja sentindo isso agora, estamos repletos de sentimentos dos quais não sabemos e, muitas vezes, isso nos enlouquece. E é por isso que existem as artes, inclusive a literatura e autores como Dostoiévski, que fazem isso de maneira excepcional. 

Ao início do texto eu disse sobre passar mal enquanto lia este livro, isso realmente é verdade, mas não é ruim. Isso ocorre porque surgem diversos sentimentos não traduzidos, guardados e sufocados por um longo tempo e encontrar um autor que consegue descrever o que está dentro de nós tão bem é algo que gera até mesmo uma certa felicidade, uma sensação de ser compreendido e de pertencimento. 

Eu sempre vou amar você, Dostoiévski, por personagens tão reais e que nos tornam menos isolados no mundo. 


Este livro não apenas é recomendado como primordial para seu repertório literário. 

Cuidado com as entrelinhas e até a próxima resenha.


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